17.5.06

02/03/2006

Porque os outros são cheios de defeitos.

Finalmente o mês de fevereiro acabou. O menor mês do ano, para mim, foi muito extenso. E tenso. Após toda serenidade vivida em janeiro, o mês dois desestruturou completamente minhas atitudes, pensamentos e comportamentos.

Acredito que alguns posts aqui no Solilóquios indicam muito de minha personalidade. Extremamente emotivo, introspectivo e subjetivo. Chego a ser contraditório: enquanto deixo muito explícito o meu estado de espírito, disfarço ou, até mesmo, escondo os motivos de meu temperamento. Sempre fui assim. Falo muito sem dizer ou, na maioria das vezes, digo sem falar. Para bom entendedor, um pingo é letra, um olhar basta.

Meus amigos são ótimos entendedores. Me conhecem há anos. Oito, dez ou 21 anos, como o Nívio, hoje padrinho de minha filha, com quem dividi os maiores acontecimentos de minha vida. É curioso como estes amigos me conhecem. Sabem interpretar meus gestos, minha palavras. Compreendem quando preciso ficar quieto e, também, sabem a hora que precisam me arrastar para fora de casa e me dar uma injeção de ânimo.

Porém, hoje convivo pouco com estes amigos. Temos nos encontrado muito, mas, mesmo assim, não temos mais a convivência diária como há quatro ou cinco anos atrás. Divido meu dia-a-dia com os colegas de trabalho e, principalmente, com a turma da faculdade.

No trabalho, em meio a tanta turbulência, não tem sobrado tempo para conversas pessoais. Mal é possível perceber uma mudança no visual, quanto mais no comportamento do colega ao lado. Já na faculdade, todos têm percebido que estou diferente. Não houve um dia sequer que entrei na sala de aula sem que alguém perguntasse: o que você tem Dani? Você está tão estranho? Até piadinhas esdrúxulas já ouvi. Como me conhecem pouco, ou não me conhecem, alguns associaram minha mudança de comportamento ao fato de usar roupas diferentes, mais sociais que as de costume.

Alguns acham que estou com raiva deles. Outros julgam até que não me “misturo” mais. Outros puxam conversa, demonstrando-se preocupados. Em alguns percebo uma preocupação sincera em relação a mim. Já em outros percebo que a preocupação é com eles próprios, seja pelo motivo que for.

De fato estou diferente. Não nego que minha postura mudou. Realmente tenho evitado me “misturar” com algumas pessoas. Tenho dito mais “não” que “sim”. Tenho me preocupado pouquíssimo com os outros. Tenho conversado pouco com os outros. Por quê? Simples: porque os outros são cheios de defeitos.

Porque os outros agem sempre por interesse. Seja material ou afetivo, não importa, agem sempre por interesse. Porque, para os outros, as pessoas são descartáveis. Porque os outros somente se importam com o próprio umbigo. Porque os outros cobram demais e pagam pouco. Porque os outros são cínicos. Porque os outros mentem. Porque os outros não sabem agradecer, menos ainda pedir desculpas. Porque os outros são como os outros, cheios de defeitos. Porque eu sou igual aos outros.

Para meus amigos de há tempos é nítido que passo, novamente, por uma fase de auto-conhecimento, de introspecção. Não sabem os motivos desta fase, que, por sinal, são muitos, e nem os precisam saber. Mas têm certeza que, assim como as outras, essa fase passa. E com ela passam os questionamentos, as neuroses, o silêncio, os frisos na testa, o comportamento arredio, a falta de paciência.

Mais que isso, sabem eles que continuo o mesmo Daniel. Têm ciência que é o Daniel passando por problemas que não conta. Dá indício de quais são as dificuldades, mas não as explicita porque não gosta de receber conselhos. Percebem em seu olhar que precisa de silêncio, e sentam-se ao seu lado, em silêncio compreensivo.

Espero que com o tempo os amigos da faculdade também me percebam como meus amigos “das antiga”. De certo continuarão me achando louco, mas torço para que não me achem mais tosco do que realmente sou. Há alguns meses atrás, eu estaria muito preocupado com isso. Teria medo de perder amizades. Atualmente estou ligando o FODA-SE. Não sei se é o melhor para mim, mas tenho certeza que preciso, neste momento, me preocupar muito comigo e dispensar mais atenção a mim.

Quarta-feira de cinzas. Dia cinza, céu nublado. Início do mês de março. Data inicial de meu inferno astral. Daqui a trinta dias comemorarei mais um aniversário. Provavelmente no dia 31, como na maioria dos anos anteriores, irá chover. E a chuva lavará minha mente e trará águas limpas para continuar tocando o barco, rumo a uma nova fase.

Assim seja!

Ouvindo:
Águas de Março (Tom Jobim)
Voz: Ney Matogrosso

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É uma ponta, é um ponto, é um pingo pingando
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

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