8.1.08

Intempérie



“A vida é a arte do encontro,
embora aja tanto desencontro pela vida”
Vinícius de Morais




De fato havia em mim certo desconcerto que não procedia de qualquer desventura que não a insólita experiência do não viver. Era como se, de algum modo, a vida me soprasse lembranças de terra não vista. Começo pedante — eu sei — embora me achando prosaico, as reverberações desse conjunto bizarro o qual, impensadamente, chamo de eu. São desconsolos em fala escrita de quem jamais soube o que é um verdadeiro encontro.

Sentado à mesa, roto, observava a vida tola, sua gente escrota, e maldizia o vento quente, a hipocrisia dos fortes, a arrogância dos fracos, o bêbado insano da mesa ao lado. Inquietude a cada trago, desilusão a cada gole. Em um momento de maior excitação e blasfêmia, desejei assumir o lugar do bêbado e bradar aos quatro ventos a náusea que, naquele momento, me afligia.

A vida me é, às vezes, pesada demais. Dói, arranha, machuca, incomoda, sei lá. É tanto querer suprimido pelo não pedir, pelo não dizer, pelo não tentar. E especialmente naquela noite eu me sentia extremamente só, vazio, perdido e desprotegido. Queria falar e, talvez por isso, invejava o bêbado que falava sem parar, desprendido de formalidades ou de qualquer preocupação hipócrita daquelas que temos quando em público.

O acaso (ou isso que ao acaso chamamos de acaso) resolveu pregar-me uma peça. Já que queria eu falar, enviou-me uma pessoa ouvinte. Existem pessoas falantes, como eu, que falam. Há também pessoas ouvintes, como ela, que ouvem, ou escutam — tanto faz. E falei muito naquela noite. Assim como nas várias noites que se seguiriam, eu falei muito e fui ouvido (ou escutado). E daquele fortuito encontro surgiria em mim um sentimento que viria a me servir, ao mesmo tempo, de antídoto e veneno.

É sabido que em certa região da Espanha o alto índice de insanidade mental é causado pelos fortes ventos quentes — tão violentos que chegam a espalhar fogo em vilas e plantações. Talvez o mesmo tenha me ocorrido... Os ventos quentes de outubro trouxeram à tona minha insanidade adormecida. E outras tantas violências primaveris vieram catalisar meus desatinos.

Sempre em busca de um tipo "ideal" , vejo-me ridículo em meu romantismo. Patético, não hesito dizer. Mas, no fundo eu gosto dessa fuga. Sim. Porque querer apenas o "ideal" é fugir de tudo que pareça palpável, sólido e real. Medo? Deixo-me a dúvida.

Sem me dar conta (ou, quem sabe, disfarçando o que já percebia) minha vida foi se misturando à daquela pessoa que me ouvia. Ou talvez fosse eu mesmo quem misturava a vida dela à minha. Não sei. Percebo apenas que não pude evitar. Ir ou não ir, querer ou não querer, ligar ou não ligar, dizer ou não dizer, pensar ou não pensar, sentir ou não sentir... Nada. Tudo parecia tão natural e seguro que eu, simplesmente, ia.

Fui sem saber aonde poderia chegar. Era tão agradável a caminhada... Não valia a pena - eu pensava - perder tempo com qualquer neurose, pseudo-moralismo ou coisa do tipo. A vida é tão curta, eu dizia, que se não a agarramos com força, ela nos escapa por entre os dedos.

São os momentos que dão significado à vida. E são os atributos dos instantes que compõem estes delicados momentos que determinam a intensidade de cada experiência. Experimentava eu o contato com o outro, de forma muito peculiar se comparada a experiências por mim já vividas. Talvez em função da singularidade daquele contato, como que involuntariamente, eu utilizava artifícios vis para prolongar e intensificar, simbolicamente, aqueles instantes nos quais por ela eu era ouvido.

Utilizo o termo "involuntário" para designar um estado em que o impulso se torna mais forte que a razão. E, honestamente, demorei a perceber que agia impulsivamente. A "coisa" (para não perder tempo procurando nomear esta minha intempérie) me era tão bruta que, de repente, me peguei escrevendo versos cujos significados não conseguia compreender — nem sequer percebia ao quê, nem a quem, me referia. Durante o trabalho, ou mesmo compenetrado nos estudos, rascunhava frases como "Socorro, eu não sinto nada além de desejo." "Quero aquele, quero aquilo, quero tudo isso." "Sonho que estou dormindo e acordo com a certeza de estar sonhando." "E Teu cheiro... cheiro forte, cheiro de quero hoje, quero agora, quero.".

Afinal, o que (ou quem) eu queria? Sempre procurei paixões como força propulsora de minha motivação pessoal, embora preservasse a lúcida consciência de que o objeto do desejo é sempre maior do que o próprio desejo. Contudo, jamais reconheci em mim este "real" e latente desejo. Nem o seu tipo "ideal" fui capaz de rascunhar de forma mais verosímil. Por isso, objetos criei inúmeros. E aquela pessoa ouvinte, vim a perceber, era mais um objeto de paixão por mim personificado.

Chama-se de amor platônico aquele em que o simbólico é o lugar de despejo das punções. É unilateral, já que é experimentado em silenciosa solidão. E é traiçoeiro, pois transfigura o ser amado em um objeto sublime. Ao refletir sobre essa visão do amor platônico, senti-me tranqüilizado por perceber que não enxerguei, em momento algum, qualquer característica esplêndida naquela pessoa. Nem mesmo sua condição de ouvinte me parecia majestosa. Então, por que tamanho encanto? Talvez porque a atenção que demonstrava a mim alegrava-me profundamente, e o seu silêncio, guardado pelo olhar indecifrável, inspirava-me por demais.

Quando, enfim, me julguei apaixonado, em retórica questionei "será que dessa vez será diferente?". Sinceramente, pouco me importava, àquela altura, as semelhanças ou diferenças com qualquer experiência já vivida. Me via estúpido por ter consciência da minha estupidez ao entregar-me, mais uma vez, às ciladas do desejo. Mas, repito, tudo fora tão natural que eu, simplesmente, ia.

Foi através de um simples recibo de cinema que percebi a paixão que me envolvia. A expressão "kit casal" nele impressa desencadeou a rememoração de uma semana de encontros diários — digna de casais em início de romance. O filme em questão era uma comédia romântica, com direito a muito mamão com açúcar, pipoca e refrigerante. Houve também encontros ainda mais bucólicos em praças, exposição artística, Café com clima "cult" e longas madrugadas à som ambiente e meia-luz.

Recordei-me agora que na mesma noite em que fomos ao cinema, ao encontrarmos com pessoas que não sabiam o que fazíamos antes de encontrá-las, nos foi questionado se éramos namorados. Outras pessoas, em situações distintas, também me fizeram a mesma pergunta. Será que havia algo em nosso olhar ou, quem sabe, formávamos um campo magnético em torno de nós capaz de despertar tal desconfiança?

Já consciente do simulacro de romance que havia eu criado, pude distanciar-me de mim mesmo e julgar-me como quem observa um desconhecido. Esse distanciamento foi providencial para conter aquele sentimento que, se alimentado ainda mais, inevitavelmente se consolidaria em angústia. Fui sincero e honesto comigo mesmo. Percebi que havia muitos atributos que diferenciavam essa paixão das que vivi anteriormente e que, assim, talvez não se configurasse paixão. Não recordo-me de nenhum instante em que tivesse sido arroubado por qualquer desejo libidinoso em relação àquela pessoa. Para um libertino confesso, a ausência do desejo carnal revela um sentimento muito mais fraterno que apaixonado, acredito. Vale lembrar que o desejo do toque, mesmo quando desperto pelo cheiro da pele, não se refere obrigatoriamente a um desejo sexual.

Todavia, se considerados os questionamentos despertos pela análise daquele contato, todo aquele sentimento se assemelhava às antigas paixonites. A impossibilidade de interpretação de inúmeros gestos, palavras, expressões e até demonstrações diretas de afeto, chegaram a me fazer confundir "platonice" com reciprocidade daquele desejo disforme.

Houve sinergia entre nós? Não tenho dúvidas que sim. Comunhão, houve? Talvez. Reciprocidade? Quem sabe... Em algum instante, teria ela indagado a possibilidade de também estar envolvida como eu? Acho pouco provável. E se eu tivesse revelado a dúvida, qual seria a sua reação? Perguntas que se extinguem no "será?", "e se", "mas, se", "se".

Lembrei-me que em uma daquelas madrugadas em que era ouvido, confidenciei ter percebido, na libertinagem, que o gozo é fugidio, dado o seu caráter efêmero, e que o calor do toque é mais perene que o calor do ato. Analogamente, ao final de todo o processo catártico daquela paixão amorfa, percebi que buscava naquela pessoa não a efemeridade de um romance, mas a perenidade de um relacionamento em que o interesse mútuo fosse a partilha de idéias. Estas, capazes de auxiliar ambos a conhecerem a si próprios. Por isso, senti-me imensamente feliz e realizado ao ser chamado de amigo.

Apesar de julgar pouco provável que ela venha a ler este texto um dia, tenho certo receio de qual poderá ser a sua reação. Sentir-se-á ultrajada? Espero, sinceramente, que não. Menos ainda desejo que se compadeça por mim. Ao contrário, quero que sinta-se lisonjeada por ser capaz de despertar no outro sentimentos tão sublimes. E, principalmente, que se orgulhe por ter contribuído sobremaneira com o processo de amadurecimento de um homem cujo espírito adolescente age desenfreado como o de um menino afoito. Acima de tudo, que lhe desperte, ou aumente, o desejo de consolidar uma bela e sincera amizade.

Por fim, julgo pertinente tecer mais uma consideração sobre a paixão que, sei, está à espreita de qualquer deslize meu. Paixão é sempre um falso encontro. É aquela velha história: João que encontrou Maria que encontrou José que encontrou Sofia que encontrou Joaquim que encontrou Tereza que encontrou Cecília que encontrou Pedro que encontrou Fernando que, lúcido, foi o único a perceber que, em verdade, todos aqueles não haviam encontrado ninguém — ao contrário, estavam apenas perdidos de si próprios...

6 comentários:

Anônimo disse...

Bonito...

Muito bonito...

Mas ainda prefiro um Sonho de Valsa na barriga a uma trufa de avelãs na gaveta - e derretendo...

Numa boa, torço para que um dia passe a enxergar a vida com a simplicidade que ela muitas vezes nos demanda e pare de se encantar com seu próprio padecer romântico.

O tempo urge. Percebeu que 2008 já está aí? Aliás, feliz ano novo, meu amigo.

Grande abraço!

Mah Caldeira disse...

Acho que é uma tarefa hercúlea transformar a poesia da vida em palavras numa tela em branco, e acho que você entende o que estou dizendo. Eu preferia o "livro sem final"... Mas, de toda forma, seu texto está fabuloso.

Espero que em 2008 seu coração encontre muitos objetos de paixão... Mas que, em algum deles, você também encontre aquele "algo a mais" que a gente sempre busca.

Beijos, querido!

Mah Caldeira disse...

Passando de novo só pra contar que REATIVEI o blog! No mesmo endereço. :P

Passa lá depois!

Beijo!

Anônimo disse...

gostei demais!
3 palavras que descrevem o texto:

Profundo, chamativo, inspirador!

te prende qdo lê!
adorei!
bjs
saudade

Thá Daher disse...

Dani,
Comecei a "te devorar "hoje...
Ainda não tenho blog, mas o seu está na lista dos meus favoritos.
Diariamente vou te ler um pouquinho, espero que com o seu conssentimento, é claro. O "vazio" das muitas coisas que preenchem é um outro é um território que nao cabem pretensas invasões.
Por isso amigo, venho com a humildade de quem nada espera, de quem sempre procura e de quem talvez encontre, conhecer um pouco dos teus "vazios" preenchidos.
Um bjo na cara.
Com amor,
Thalita Daher.

Anônimo disse...

Danizão,
passei aqui pra te pedir um favor. Troca meu endereço aí na sua área de links? Coloca agora o www.raquelcamargo.com/blog por favor? obrigada e beijão