22.5.06

Quarto n° 15

Da janela do quarto n° 15 ele observava o cemitério. No meio da madrugada, com o silenciar das vozes, era possível perceber o que dizia o vento. Naquela madrugada, em que observava o cemitério, o vento lhe trazia notícias da vida. Mas ele insistia em tentar compreender os fatos da morte. E isso o fazia se sentir vivo.

Ao terminar de tragar mais um cigarro, voltou para a cama e passou, novamente, a observar ela. Nua, encolhida embaixo dos lençóis, demonstrava sinais de fragilidade tal como de uma criança. A doçura daquele sono que ele velava o fazia pensar na vida. E em seus pensamentos ele procurava encontrar significados para as coincidências que os levavam a estar ali.

Certa vez, ele a ouviu questionar se as coisas acontecem porque têm que acontecer ou se a sucessão de fatos é que determinam o que chamamos de acaso. Ele não compreendeu bem aquele questionamento. De certo, ele se recusava a tratar o que acontecera entre eles como mera coincidência do acaso.

No entanto, ele não podia ignorar as coincidências que norteavam o contato entre eles. Seria mesmo o acaso que os levavam a estar ali, no quarto n° 15? Era naquele quarto onde os dois se conheciam melhor. Mesmo divididos entre a embriagues e o torpor, se sabiam e se sentiam em sensatez.

Voltava a tragar outro cigarro e a observar o cemitério. Que mistérios são aqueles guardados pela morte – ele queria saber. Será a linha que separa a vida da morte tão tênue quanto a neblina que cobria o gramado? Será essa estrada tão curta quanto a distância do quarto ao cemitério? Mistérios que ele tentava destilar, em vão, a cada trago.

Posto novamente a observá-la, identificava em seus suspiros mistérios que também gostaria de compreender. Não mistérios da vida ou da morte, mas sim da alma feminina. Enigmas que parecem querer se revelar em gestos, mas se escondem em olhares – ou vice-versa. Segredos de uma mulher que se recusa à entrega – por medo ou por desgosto, ele desconhecia – de sua alma.

Ao raiar o dia, ele observou novamente o cemitério e se sentiu ainda mais vivo. Os segredos da morte já não lhe prendiam o pensamento. Os enigmas da vida lhe despertavam mais interesse em meio à luz do sol.

Quando ela despertou, ele se sentiu imensamente feliz. Os segredos daquela mulher, então desperta, já não lhe afligiam mais. Nos braços dela, ali no quarto de n° 15, ele se sentia seguro e vivo.


Ouvindo:
Sete Desejos (Alceu Valença)
Voz: Alceu Valença

Recomeçando das cinzas
Eu faço versos tão claros
Projeto sete desejos
Na fumaça do cigarro
Eu penso na blusa branca
De renda, que dei pra ela
Na curva de suas ancas
Quando escanchada na sela

Lembro um flamboyant vermelho
No desmantelo da tarde
A mala azul, arrumada
Que projetava a viagem
Recomeçando das cinzas
Vou recompondo a paisagem
Lembro um flamboyant vermelho
No desmantelo da tarde

E agora penso na réstia
Daquela luz amarela
Que escorria do telhado
Para dourar os olhos dela
Recomeçando das cinzas
Vou renascendo pra ela
E agora penso na réstia
Daquela luz amarela

E agora penso na estrada
Da vida, tem ida e volta
Ninguém foge ao destino
Esse trem que nos transporta

4 comentários:

Mah Caldeira disse...

Simplesmente AMEI sua crônica. Perfeita! =)

Anônimo disse...

.....Acho q num preciso comentar nada!!!!
Esta crônica é simplesmente perfeita!!!
Adorei.....
Tenho gostado muito dos seus textos!
Continue assim!!!
Está de parabéns!!!
Bjs

Jay

Anônimo disse...

Poético, heim?
Sinto no ar uma vibraçaõ capaz de embriagar as cabeças e corações mais reticentes.
Viva!

Anônimo disse...

muito bom cara! fico feliz cada vez que entro no teu blog, e como ja falei, mesmo não deixando comentarios regularmente, estou sempre dando uma espiada e acompanhando teus textos...como sempre , esta de parabens!