Não há alegria que me basta
Enquanto julgo ser mera farsa
Tudo aquilo que resvala
Nesta minha alma opaca*
D.Silveira
(* da série Versos Bêbados em Guardanapos Sujos)
"Por que você a atacou?”, perguntou friamente o repórter. Com os braços pra trás e as mãos algemadas, o homem permaneceu imóvel, de cabeça baixa, e nada respondeu. “Por que você atacou a sua mulher, homem?”, insistiu ainda mais secamente o repórter. O silêncio daquele homem, aos olhos do jovem repórter, traduzia a frieza de um monstro perverso, capaz de golpear uma dama por puro capricho da macheza. “Por que...”, e antes mesmo do inexperiente repórter completar a insistente pergunta, já de forma acusadora, o homem levantou vagarosamente a cabeça e, em seguida, dirigiu o olhar trêmulo e perdido ao olhar acusador, embora temeroso, do jornalista, e perguntou: “É crime amar demais, moço?”. Nosso jovem e inexperiente representante da imprensa sentiu todo o corpo estremecer e um nó abruptamente migrou-lhe da boca do estômago para a glote, e seu olhar subitamente ganhou um ar mais perdido que de seu interlocutor. Manteve-se um silêncio curto, daqueles que parecem durar invernos, até que foi quebrado pela insistência do suspeito que, novamente, perguntou ao jovem “Por acaso, moço, é crime amar demais?”. O repórter se sentiu zonzo. Sua pele tomou um tom branco-amarelado como que sua bílis tivesse sido rompida e o azedume da hipocrisia lhe contaminasse as vísceras, fazendo-lhe regurgitar as mágoas de um amor antigo e mal correspondido. “Me responda, moço, é crime amar demais?”, insistiu, mais uma vez, o suspeito. Atônito o jovem repórter balbuciou algumas gagueiras até que conseguiu dizer, quase soletrando, “Ta-tal-vez-se-seja-pe-pecado”. E contou-lhe o suspeito que ainda menino viu a mãe deitar-se com o tio, aproveitando-se da ausência do pai que tanto duro dava capinando terra alheia para garantir em casa pão, farinha, fubá e, vez-em-quando, algumas rendas para o agrado da vaidosa esposa, e que naquela tarde o zeloso pai retornara mais cedo da labuta vindo a dar-se de frente com tamanha safadeza feita diante dos filhos ainda catarrentos. O pai não teria tido forças para gritar, nem maldizer baixinho tamanha heresia, mas a dor certamente lhe ceifava o peito de tal modo que para sanar a dor o grandioso pai, ainda com a foice em punho, rasgou o próprio ventre caindo ao chão de joelhos com sangue e tripa escorrendo-lhe pelas pernas. A mãe, desnorteada, pôs-se nua defronte o pai a blasfemar a má sorte de ter casado com homem tão frouxo. O tio, desesperado, gritou “Vão bora daqui mulher antes que os diabos venham” e, não sendo seguido, fugiu para longe daquelas terras e nunca mais se teve notícia de seu mau destino. As blasfêmias da mãe se transformaram num pranto convulso, e o suspeito, com seus parcos sete anos, tomou a irmã caçula, de quase dois anos, nos braços, e esperou até que os urros da mãe trouxessem à casa a vizinhança curiosa que cuidou de chamar a polícia e se encarregou de encomendar a alma do pobre pai a Deus, e da devassa mãe ao demo. Dias seguidos foram ele e a irmã morar com os avós em terra distante e ainda mais pobre, onde a caçula morreu em poucos meses por desnutrição e, coisa de sete anos ou menos depois, morreram os avós vítimas da mesma fome. Crescido e só no mundo, o suspeito foi tentar a sorte na cidade grande onde, com a graça de Deus, arrumou trabalho de servente e, com muito suor, conseguiu bater sua própria lajem sobre dois comodozinhos onde recolhia sua amargura e solidão. Até o dia em que, descansando em frente à obra em que trabalhava, viu passar uma linda flor graciosa e deslumbrante que, pela primeira vez em sua vida de homem, despertou-lhe o furor da carne. Veio ele a descobrir que o jardim onde vivia aquela flor era próximo de seu barraco, e ele não entendia como ainda não a havia notado. E disse o suspeito ao jovem repórter que ambos se notaram desde aquele dia, e que em pouco tempo teria ele caprichado um pouco mais o humilde barraco onde levou a flor para dar mais cor e cheiro ao ambiente. Mas a vida prega peças, dizia ele, e no dia em que ele comprara para a linda flor um belo par de brincos para lhe enfeitar, chegou mais cedo do trabalho e viu sair da casa um homem descamisado que partiu ligeiro beco acima. Ao entrar no primeiro dos dois cômodos viu a flor descomposta e transparecendo nos olhos a perversão das putas e o sangue lhe subiu à cabeça e sem pensar em nada e sem medir consequências tomou à mão o machado que estava próximo e, então, só se lembrava da hora em que o tacaram feio um cachorro no camburão e o levaram para aquele lugar onde nunca tinha estado e onde um moço ainda sem aprendizagem da vida lhe perguntava o por quê de algo que ele sequer teve tempo de entender. “E eu te pergunto, moço, é crime amar demais?”, perguntou mais uma vez. “É... talvez seja”, respondeu entre os dentes o repórter. O jovem e inexperiente jornalista deixou a delegacia com o bloco de anotações quase em branco, tendo escrito apenas o que lhe foi possível transcrever do Boletim de Ocorrência antes de lhe colocarem de frente ao suspeito. Ele entrou no carro de reportagem com o olhar ainda mais perdido, sentindo ter sido tomado por um vazio terrível. De volta à redação, sob a cobrança do grosseiro chefe, ele pediu ao apurador que checasse o possível óbito da mulher. Estranhamente desejou que ela tivesse morrido, mas como ela ainda estava cá no mundo dos vivos, informou antes das transcrições policiais o estado grave de saúde em que ela se encontrava, ocupando-se apenas em noticiar o crime, já que sobre amor ele não consegue mais falar.
3 comentários:
Putz.
Uma palavra só:
TRÁGICO!
Abs.
"É feio homem chorar!" Disse-me, certa vez, alguém que já não lembro o nome. Essas coisas de delicadeza devem ficar para as mulheres. Até hoje não entendo o porquê e continuo a chorar e ser sensível a tudo no mundo. Diante deste texto me faltaram adjetivos, mas as lágrimas e a sensibilidade, mesmo que não possam ser postadas junto a este comentário, traduziram a emoção que senti...
Não é feio homem chorar não. Homem também sente, chora, ama, escreve. Pelo menos os homens poetas, que dos outros desconheço a Vida, deve ser de amargura, certamente.
Que você continue a transmitir em palavras seus sentimentos, para que eu não deixe de chorar como homem - poeta - pateta diante de um computador.
Dani, como sempre, simplesmente perfeito!
Parabéns!
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