27.1.09

Ausência

Is There Anybody Out There ?
Pink Floyd

Is there anybody out there?
Is there anybody out there?
Is there anybody out there?
Is there anybody out there?


Quando entrei naquele elevador, um ano e dois meses depois que você se foi (o período não é exatamente este, e a exatidão pouco importa neste caso, já que foi tempo de ausência), senti que teu cheiro ainda estava presente naquela caixa branca de luz amarelo-hepática, tão nauseante. O cheiro não era exatamente o teu, mas havia resto dele lá. Daquele cheiro forte – um pouco ácido, por conta de tua natureza selvagem; um pouco amadeirado, por conta de tua origem da terra; um pouco doce, reflexo de tua alma leve, branda.

Não sei definir exatamente o cheiro que tem teu corpo. Sei que é forte, e que quando entrei naquele nauseante elevador, tanto depois que você foi embora, eu senti o resto dele que ficou grudado naquela caixa branca de luz tão hepática. Antes de apertar o botão que me levaria até o quarto andar (que não é exatamente o quarto, mas o terceiro, talvez até mesmo o segundo, mas pouco importa já que nunca entendi bem a lógica daquele edifício, e de nenhum outro também) eu senti o resto do teu cheiro forte e fechei os olhos, e aspirei com delicadeza o ar para que pudesse destilá-lo bem em minhas narinas e, assim, encontrar com mais precisão o aroma que me faria ter a certeza de que era um rastro teu naquela nauseante caixa branca e hepática que há tanto tempo, assim como você, eu não entrava.

Quando confirmei que realmente pudesse ser aquele cheiro um resto de tua lembrança naquele velho edifício, eu senti meu corpo ser tomado pela tua presença. Com os dedos estendidos e as palmas das mãos abertas, nuas e trôpegas, tateei as paredes brancas em busca de algum outro rastro teu. Um resto teu. De repente, comecei a sentir-me levitando, e me dei conta de que havia apertado o botão – o mesmo que tantas vezes acionei para ir ao teu encontro.

A viagem entre o hall de entrada e o andar de número quatro durou trinta segundos, ou vinte, ou mesmo pouco mais dez – milionésimos de segundos que precisariam ser multiplicados sei lá quantas vezes para equivaler ao tempo de tua ausência ali, naquele elevador nauseante. Senti aquele solavanco leve e acordei do transe no qual ainda não havia mergulhado por completo. Sim, ainda. Porque bastou abrir a fria porta metálica daquela caixa branca para que a luz hepática fizesse reluzir logo na minha frente, ali, bem na altura de meus olhos, o 401. Não tremi nem senti pêlos arrepiando, mas algo tomou conta do meu corpo. Talvez fosse mais restos de tua lembrança ali.

O corredor estava todo escuro, e por segundos hesitei em sair daquela nauseante caixa. Soltei a gélida porta de metal, lentamente, e atrevi um passo tímido em direção à porta de madeira seca que tantas vezes vi você abrir sorrindo. A luz acendeu porque o sensor ainda consegue captar o pouco calor que me resta. Caminhei lento, denso, trôpego. Estendi os dedos, e cortando o ar, como que usasse uma lança, estiquei o braço em direção à porta. Mas, antes que pudesse tocá-la, girei o corpo e toquei a campainha ao lado, a do 402, onde sei que tantas vezes também esteve.

A porta me foi aberta. Entrei. Cumprimentei. Observei atento em volta e notei algo diferente. Faltavam restos de você ali. Rastros que já não mereciam mais estar ali, por isso foram tirados. Naquele momento percebi que estava realmente entorpecido pelo resto do teu cheiro que aspirei com delicadeza enquanto levitava na caixa nauseante que me levou até ali, o andar de número quatro, onde tantas vezes fui ao teu encontro. Disse qualquer trivialidade que me impedisse de pronunciar teu nome, agradeci o remédio que fora buscar, e despedi-me.

Caminhei lento e ainda mais trôpego até a porta gelada de metal que guarda a caixa branca de luz amarelo-hepática. Hesitei entrar. Poderia descer brusco demais, então preferi a escada. Desci lento, denso, tenso. Sem surpresa, já que no fundo sabia que tua lembrança me levaria até ali, adentrei no salão vazio, ausente de nós dois.

Caminhei ainda mais tenso, mais denso, lento. Encostei meu nariz no vidro úmido da janela que dá pra rua – tão densa, tão tensa. E aspirando lento o denso ar, pressenti mais restos do teu cheiro ali, vagando vagabundo à espreita de minha chegada.

Um som estranhamente conhecido rompeu o silêncio do salão vazio, ausente do teu respirar. Procurei no escuro e vi num canto a velha geladeira de porta vermelho-metálica, tão viva, que você abandonou ali fazia tanto tempo. Dei dois passos em direção a ela. Parei. Olhei em volta. Mais um passo. Parei. Olhei para a esquerda, e vi no canto, entre as duas janelas, como que num flashback daqueles que a TV tanto gosta de usar, nós dois, deitados. Tuas pernas cruzadas, balançando. As minhas estáticas, esticadas. Admirei teu sorriso, e lamentei o meu olhar triste de menino assustado.

Desfiz da mente o flashback mal feito e dei mais dois passos em direção à viva geladeira vermelha e velha. Parei novamente, perdido no labirinto imaginário que criei, e ouvi você dedilhar aquela canção do Pink Floyd, que tão lindamente sussurrava os poucos versos (e na minha fantasia ouvia meu nome ser pronunciado entre os curtos versos). Hesitei e não olhei para o lado, onde, temia, veria tua imagem com violão à tira colo sorrindo doce enquanto dedilhava as cordas.

De onde estava, bastava que esticasse um pouco o braço para abrir a velha e vermelha porta daquela geladeira que me parecia tão mais viva naquele salão repleto de tua ausência. Hesitei. Temi abri-la e encontrar entre as prateleiras frias mais restos teus. Temi encontrar ali, dentro daquela geladeira, mais vermelha e viva que eu, rastros teus que me fizessem trancar-me ali, para que nunca mais eu me perdesse dos teus rastros, dos teus restos.

Caminhei rápido. Sem olhar para trás, para a janela, para o chão, para a geladeira viva, e saí agudo do salão imensamente vazio de nós dois. Desci sôfrego os poucos degraus até o hall de entrada. Saí severo daquele prédio. Acendi um cigarro ao ganhar a rua, e sem voltar os olhos para teus rastros, caminhei brusco sem teus restos. Sem teu cheiro. Sem você.

3 comentários:

Milson Veloso disse...

Relutei por dois dias antes de postar este comentário. "Ah, o Admilson de novo!" Deve pensar o Daniel...
Mas não dá pra não dizer nada diante dessas palavras, simples, belas e carregadas de emoção.
Segue que o futuro é teu!!!

Felipe Pedrosa disse...

"...Até logo,
Foi um prazer (formalmente como tinha de ser).
Sem vontade de deixar você."

Tantos cheiros, tantos sorrisos, tantos toques que hoje sem eles necessito severamente, indispensavelmente e tantos mais ...mentes, mais que nada acender um cigarro e caminhar sem olhar pra trás ou procurar teus rastros.

Fernanda Fernandes Fontes disse...

Daniel!

Ausência. Uma das palavras que mais gosto. Até escrevi algumas coisas sobre ela:

"Oposto do teu significado
preeenche tudo a que toca.
Inunda com vontade
o corpo cuja morada
abriga a partida.
AUSÊNCIA.
Completa tua forma
neste teu santuário"

Isso diz do que sinto quanto deste estado em mim; sem rastros, sem cheiros, sem ele.

É assim.

Newton Paiva tb? Bom, mto bom!

Passa lá:
http://degustacaoliteraria.blogspot.com

Abraços!